José Paulo Netto é um nome
conhecido e respeitado por sua trajetória pessoal e política, além, como é
evidente, por suas ideias e posições expressas em sua significativa obra. É
doutor em Serviço Social pela PUC-SP, tem experiência docente, além de no Brasil
onde sua eloquência, humor cortante e didática incomparável já é conhecida,
trabalhou também em Portugal, país que o recebeu no exílio, na América Central,
Argentina e Uruguai. Ensaísta competente, frequentemente nos brinda com textos
tanto no Brasil como no exterior.
Divulgador
incansável do marxismo entre nós, é responsável por traduções de textos de
autores clássicos como Marx, Engels, Lênin e Lukács, autor em que se destaca
como um de nossos maiores especialistas. De sua vasta obra poderíamos citar seu
imprescindível “Capitalismo monopolista e Serviço Social” (São Paulo: Cortez,
2006) “Ditadura e Serviço Social” (São Paulo: Cortez, 2004), assim como
trabalhos de fôlego teórico e político como em “Capitalismo e reificação” (São
Paulo: Ciências Humanas, 1981) e “Marxismo Impenitente” (São Paulo: Cortez,
2004). Recentemente, em coautoria com Marcelo Braz, produziu “Economia Política
– uma introdução teórica” (Cortez: São Paulo, 2008).
José Paulo
nos recebeu em sua casa e, depois de oferecer um excelente bacalhau, que
comemos como comunistas, isto é, cada um de acordo com suas necessidades,
concedeu à Novos Temas de Ciências Humanas esta entrevista.
NT – José Paulo, inicialmente gostaria que você nos
falasse um pouco de sua vida, dos elementos biográficos que nos ajudam a
entender sua trajetória política e acadêmica.
JPN – Não
sei se elementos biográficos são importantes, mas, enfim... Nasci em Juiz de
Fora em 1947 e a minha socialização elementar se deu nos anos 50. Juiz de Fora
era uma cidade operária, industrial – fora o segundo centro industrial de Minas
– e eu nasci em um bairro da margem esquerda do Paraibuna, o Vitorino Braga.
Diante da
minha casa havia uma tecelagem e, à esquerda, uma torrefação de café; fui,
portanto, criado em um ambiente operário. Ali dominava o petebismo, não era um
ambiente comunista. Meu pai, mineiro de Paiva, era um conservador udenista;
minha mãe, também mineira, passou a adolescência no Estado do Rio de Janeiro –
ela viveu em Pati do Alferes e, em 1945, participou do movimento da legalização
do Partido Comunista Brasileiro. Como você pode imaginar, este foi um casamento
divertido.
Eu sou fruto
também de um colégio metodista de elite, o Instituto Granbery. Contudo, a
presença da classe operária na minha infância e adolescência é fundamental.
Cada um tem, na vida, a música da sua infância – a música da minha infância é o
tamanco dos trabalhadores da Malharia Santa Helena e do Café Câmara. Se você me
perguntar como eu cheguei ao comunismo, diria que foi por um conjunto de
incidentes aleatórios. Mas certamente foi importante o fato de Milton
Fernandes, que era o barbeiro de meu pai e que cortou o meu cabelo até a
adolescência, dar-me a ler, quando eu tinha doze anos, o Manifesto do Partido
Comunista, uma ediçãozinha de capa verde e branca da Editorial Vitória. Eu li
aquela coisa e concluí com a rapidez própria do adolescente: aqui está a
solução para o mundo!
Sou, assim,
a resultante de uma relação conflituosa: trabalhadores fabris e educação num
colégio protestante – o Granbery, creio que do mesmo ramo do Benett, aqui no
Rio, e do Mackenzie, lá em São Paulo. Mas, felizmente, não tive formação
religiosa e, por caminhos meus, tornei-me ateu. Sou tão ateu que, às vezes,
vejo-me mesmo como um velho jacobino, ateu militante e praticante.
NT – E como você chegou ao Partido Comunista?
JPN –
Cheguei ao Partido (PCB) no dia 6 de janeiro de 1963. Sei a data porque foi o
dia do plebiscito que devolveu a Jango prerrogativas presidencialistas. O que
me levou formalmente ao partido, além da influência do Milton barbeiro e da
leitura do jornal Novos Rumos, que eu comecei a vender no colégio, foi Roberto
Rezende Guedes, o “Roberto Bolinha”, então estudante de Direito: ele formalizou
a minha adesão ao PCB, meu único partido, no qual eu estive até 1992, quando se
deu a criação do PPS. Eu não fiquei com o PPS, porém igualmente não me vinculei
aos companheiros que lutaram pela recuperação da sigla, mas com os quais hoje
eu me identifico à medida que são comunistas.
Voltemos um pouco
ao que me tornou comunista. Giocondo Dias, que eu gostaria de recordar nesta
conversa, dizia que há três caminhos para o comunismo: o caminho do coração, o
caminho do estômago e o caminho do cérebro. O caminho do coração é o caminho da
defesa da justiça social; o caminho do estômago é aquele posto pela fome, e o
caminho do cérebro é o aberto pela necessidade da compreensão da sociedade que
aí está. Tornei-me comunista pelo caminho do cérebro, não foi pelo caminho do
coração nem da fome – salvo uns poucos meses, logo quando tive que sair do
Brasil, eu nunca passei fome: sou de uma família da pequena burguesia urbana
tradicional que hoje está desaparecendo. Não precisei trabalhar para estudar –
embora tenha trabalhado, não foi por necessidade. Na minha família, tive sempre
estímulos intelectuais e aí entrou em cena o fascínio intelectual próprio do
marxismo. Em algum lugar, Hobsbawm escreveu que você só acabará com o marxismo
se você acabar com todos os livros já escritos. Há um apelo do marxismo à inteligência
que é uma coisa impressionante! O que a leitura sistemática e permanente dos
clássicos do marxismo me permitiu foi iniciar a compreensão não só da dinâmica
da história, mas a da minha vida cotidiana, da relação com a minha família, com
os meus amigos, com as minhas companheiras e com aqueles que me são próximos. O
marxismo, para mim, nunca foi uma teoria descolada da vida – pelo contrário,
ele continua a me ensinar a compreender inclusive a minha vida imediata. Creio
que foi por aí que me tornei comunista – é isto que sou: sou, para dizer com
meu amigo Sérgio Brasil, ontologicamente comunista.
Tudo isso me
levou ao PCB, partido criado por Astrogildo Pereira, que teve como grande
liderança Luiz Carlos Prestes, que entrou em uma fase, eu diria, terminal nos
anos 1980 – e eu tenho responsabilidade nisso, porque fui membro deste partido
por quase trinta anos e fiz parte até da sua direção. Hoje, mais do que nunca,
estou convencido de que é possível construir uma sociedade igualitária e,
porquanto igualitária, que possa garantir as diferenças, porque o contrário da
igualdade é a desigualdade e não a diferença – por isso, estou conhecido que o
comunismo é a única alternativa para transformar e redimir a sociedade humana e
que só há lugar para mim num Partido Comunista.
Entrei no
Partido – no seu movimento juvenil – em 1963, depois veio o golpe e o Partido
viu-se amplamente desorganizado. Só foi rearticulado a partir de 1965;
participei desta rearticulação na minha cidade e já em 1967 era membro do
Comitê Municipal, depois fui tendo outras responsabilidades. Quero dizer algo
que, para mim, é da maior importância: hoje, mais de quarenta anos depois, se
tivesse que voltar minha vida atrás e pudesse refazê-la, faria tudo
substantivamente igual – corrigiria os meus muitos erros pessoais, mas meu
lugar seria na luta contra a ditadura, no PCB, e hoje apoiando o PCB, que aí
está, tendo à frente companheiros como o Ivan Pinheiro, o Antônio Carlos
Mazzeo, você e tantos outros, a maioria dos quais nem conheço, mas que prosseguem
uma luta que começou lá em 1922 e da qual somos todos os legatários.
NT – Falemos um pouco de sua carreira acadêmica?
Como você chegou aos estudos de Letras e do Serviço Social?
JPN – Isto é
engraçadíssimo! Fiz dois cursos: Serviço Social e Letras. Bem, na minha cidade,
você pode achar engraçado, mas o curso mais avançado era o curso de Serviço
Social. Era um curso onde se lia Caio Prado Jr., Florestan Fernandes, Nelson
Werneck Sodré... Interessei-me pelo Direito, mas fiz Serviço Social e depois o essencial
do curso de Letras, que não concluí. Mas quando cheguei à universidade, já
tinha a minha cabeça feita pelo PCB; de fato, minha formação, eu a devo ao PCB
e aos camaradas que me abriram tantos caminhos, como – dentre muitos ao longo
do tempo – Antônio Roberto Bertelli e Carlos Nelson Coutinho. Com efeito, eu me
formei no PCB.
Dessa
formação resultou que me iniciei como crítico literário e acabei me deslocando
para o terreno do Serviço Social. Acredito que os assistentes sociais são uma
categoria muito responsável, muito séria, mas, na verdade, como dizem dois
queridos amigos – o Carlos Nelson e o Evaldo Vieira –, eu não passo de um
assistente social honorário.
Comecei a
lecionar na Faculdade de Serviço Social de Juiz de Fora em 1972. Desde então, participando
da formação teórica e das polêmicas do Serviço Social, suponho ter dado uma
contribuição modesta, mas creio que significativa, para as novas gerações de
assistentes sociais, intervindo também no debate sócio-político mais amplo, mas
sem ilusões.
A academia
para mim foi sempre uma estação. O que eu quero dizer com isso? Ao contrário de
muitos companheiros, que imaginam a academia como um espaço de debate livre e
de pesquisa autônoma, eu a avalio como um lugar de reprodução ideológica a
serviço da burguesia e do capital – evidentemente, há nela disputa hegemônica e
luta ideológica, mas tudo isso com enormes limites. Nós temos que estar nela
para forçar a polêmica sobre questões substantivas, para evidenciar
contradições, para dialogar e aprender com os que pensam diferentemente de nós,
para fomentar a pesquisa sobre o que é socialmente relevante, para levar ao
limite suas eventuais dimensões sociocêntricas, para estimular a dúvida sem a
qual o conhecimento é impensável – mas tudo isso sem ilusões. Eu estou na
academia, não sou da academia.
Aprendi uma
lição com o Octávio Ianni (meu orientador de doutorado e figura pela qual tenho
a maior admiração), quando me trouxe de volta à academia nos anos 1980. Ele me
dizia o seguinte: a universidade pública – e é importante que se frise: a
pública – é um lugar para fazer e não fazer. Se você quiser ter uma intervenção
ativa, produtiva, a universidade pública oferece espaço para isso quando se
está no marco de um ordenamento político formal-democrático, como é o caso do
Brasil atual. Mas ela também é o lugar para você exercer um parasitismo
doutoral, não fazendo coisa alguma e aparentando fazer muita coisa. Aprendi
esta lição, entre tantas, com o Ianni e voltei para a academia na segunda
metade dos anos 1980. Mas não podemos esquecer que o nosso lugar essencial é
onde está a luta do povo, a luta dos trabalhadores, expressando mais
diretamente a luta de classes, que, como dizia o velho Keynes, não é uma luta
qualquer: é uma guerra de classes.
NT – E por falar em luta de classes, você viveu o
exílio. O que você pode nos contar do exílio. Como te marcou, que experiências
você trouxe?
JPN – O
exílio, de certa forma e paradoxalmente, foi um presente que a ditadura me deu
(aliás, por uma série de razões de princípio, jamais reivindiquei qualquer tipo
de anistia). Saí do Brasil em condições difíceis, o Partido estava caindo em
Minas, com os camaradas presos submetidos a torturas brutais – e muitos
revelando um comportamento heroico, como foi o caso de um camarada que está
hoje no PPS e por quem eu tenho a maior admiração e respeito, o Paulo Eliziário
Nunes – ele foi tão torturado que teve o externo afundado. O Partido cai entre
1975 e 1976, quando saio do país. Eu não estava preparado para o exílio nem
para fugas espetaculares, até porque não atuava na clandestinidade, era um
militante que operava na legalidade, ainda que exercendo também tarefas
clandestinas. Saí do Brasil em condições muito difíceis: não saí por esquemas
do Partido, saí por esquemas pessoais, fui para o Peru via Bolívia, aonde
cheguei com a ajuda de alguns políticos burgueses. Como todo comunista na
época, atuava junto do antigo MDB e tive ajuda de três falecidos dirigentes do
MDB mineiro que sabiam que eu era comunista; eles não tinham nada que ver com os
comunistas, mas eram patriotas e democratas. Marcílio Botti, um advogado
liberal que me protegia, viabilizou esta ajuda.
Saindo,
fiquei algum tempo na Bolívia, depois no Peru (onde contei com a solidariedade
de companheiros do Centro Latino-Americano de Trabalho Social e de um
brasileiro então lá exilado, Walter Tesch) e, graças às providências do Carlos
Nelson, que já estava em Bolonha, fui para a Itália. Tinha que decidir onde me
fixar, e a decisão deveria ser rápida, uma vez que deixei aqui minha companheira
e dois filhos (a minha filha nasceu no período das quedas do Partido). Com a
Revolução dos Cravos, estava posta a possibilidade de ir para Portugal e não
vacilei: estabeleci-me em Lisboa. Este período, entre a saída do Brasil e os
primeiros meses em Portugal, excetuando-se o tempo que passei na Itália, foi
muito difícil.
Em Portugal,
refiz minha vida intelectual, inclusive a acadêmica, com a enorme solidariedade
de muitos portugueses e dos poucos brasileiros que lá estavam (dentre os quais
tenho que destacar o camarada Juca, o conhecido “Juca do Brasuca”, a quem me
ligam fortes laços que datam daquele tempo). Lecionei no Instituto Superior de
Serviço Social de Lisboa e no Instituto Superior de Economia da Universidade
Técnica de Lisboa. Fiquei em Lisboa por mais de três anos e não senti o exílio
como martírio. Claro que não é uma situação que se escolhe – é mesmo um
“acidente de trabalho”, mas me integrei nas lutas dos portugueses, juntamente
com minha companheira de então, e posso dizer que, para mim, Portugal não foi
um país de exílio: foi uma segunda e amorável pátria. Ali meus filhos tiveram a
sua primeira socialização, que os marcou positivamente; ali criei duradouros
vínculos de amizade; ali tive ótimas oportunidades de estudo.
Entendo que
exílio é sinal de derrota, nunca de vitória. Não penso que exílio é honraria ou
item de currículo. Na história da resistência à ditadura, importante é quem
ficou aqui, lutou aqui e construiu a possibilidade de nós voltarmos – estes
foram os importantes. Eu fui para o exílio como um derrotado e voltei tentando
pegar o trem da história.
Tratei de
tirar algumas lições do meu exílio. No exílio, pude estudar muito e com
relativa tranquilidade. O exílio me abriu a cabeça, me tornou mais maduro, me
ensinou a compreender as diferenças, a entender que a luta pelo socialismo é
uma luta demorada e que implicará muitas alianças, muitas divergências e
convergências – e mais: também numa sociedade como a brasileira, é uma luta de
largo curso.
Quando eu
regressei, era mais comunista do que quando parti. Isto foi algo no que a
ditadura nos ajudou muito, não é? A ditadura queria nos tornar covardes, ou
renunciantes, ou mortos, mas não nos fez nem covardes, nem renunciantes. E isto
não vale só para os comunistas: creio, vale para todos aqueles patriotas,
cristãos e socialistas, que não eram marxistas e nem eram do PCB, eram de
outras organizações com as quais nós tínhamos divergências, cujas políticas até
hoje avaliamos como equivocadas, mas que deram a sua vida generosamente e que,
como os comunistas, não lutavam para fazer os ricos mais ricos – lutavam, cada
qual a seu modo, por um Brasil livre e melhor.
O exílio me
abriu a cabeça, voltei outro homem, menos dogmático – acho que nunca fui
dogmático, mas já fui muito doutrinário –, então, voltei menos doutrinário,
menos ignorante e, sobretudo, mais comunista. Voltei convicto de que não há
futuro para a humanidade fora do comunismo. Fora do comunismo só há a barbárie,
a catástrofe.
NT – De volta do exílio, você, pelos conselhos do
Ianni, volta também à universidade e foi parar na UFRJ. Como foi que isso
aconteceu?
JPN – Bem,
este foi um caminho complicadíssimo. Eu regressei disposto a não voltar para a
universidade da qual eu já fazia parte lá em Juiz de Fora antes de ir para o
exílio – quando eu era chamado “um de moço de futuro”. À época era apenas um
oposicionista de vida legal, embora todo mundo soubesse de minha filiação,
porque eu sempre tive muito orgulho de trazer a foice e o martelo estampados na
testa.
Quando
voltei, o Partido estava em uma crise enorme. Eu, filho da margem esquerda do
Paraibuna, um simples escriba interiorano, de província, tinha entre meus
amigos e relações pessoais intelectuais de enorme respeito no Partido, tais
como Leandro Konder e Carlos Nelson Coutinho. No regresso de todos nós, o PCB
estava em uma crise que ainda não era evidente, mas que já o corroia. Muito
grosseiramente, no regresso, em 1979, havia três pedaços no PCB: o pedaço dos
intelectuais a que eu era diretamente ligado (por isto, mencionei o Leandro e o
Carlos Nelson) e que reunia mais gente, que ficou conhecido como “grupo
renovador”; havia um segundo eixo em torno de Prestes – e não é preciso lembrar
que não estamos falando de um nome qualquer, estamos falando de um homem que,
antes de entrar no PCB, já era uma legenda, estamos falando do Cavaleiro da
Esperança; e havia, ainda, o segmento majoritário da direção do Partido, de que
Prestes divergia.
No exílio,
eu não participei nem da vida da cúpula do Partido, nem das suas dissensões.
Não era e não fui de organismos dirigentes do Partido no exílio. Em Lisboa, eu
estava organizado na base do Partido, que se reunia regularmente, sob a
assistência, primeiro, de Nilson Miranda e, depois, de Salomão Malina, e
cumpria as tarefas que, com outros camaradas, nos eram atribuídas: denúncia da
ditadura, atos de solidariedade, divulgação e defesa da linha do Partido,
representação do Partido em atos e eventos etc. Politicamente, era tão somente
um militante da “base” de Lisboa do PCB e, no que diz respeito à vida
portuguesa, seguindo estritamente a linha política do PCP – prestei minha
colaboração à Seara Nova, editora e revista então afetas ao PCP e dirigidas por
José Garibaldi, que me possibilitou fecundos contatos com a intelectualidade
portuguesa. Durante o exílio, não tive quaisquer responsabilidades de direção
no PCB.
Na sequência
do regresso, a divisão do Partido se evidencia de modo traumático: fratura-se
entre um setor dito renovador, Prestes e a maioria da direção. Eu não tive
dúvidas e não me arrependo da posição que tomei: então, preferi errar com o
Partido (que tendia claramente a aceitar a maioria da direção sem Prestes) a
que acertar sozinho. Penso que não me equivoquei.
Prestes se
auto-excluiu do Partido, os chamados renovadores tomaram rumos muito
diferentes, poucos deles se conservaram marxistas e comunistas – aliás, o mesmo
se pode dizer daqueles que acabaram por constituir o PPS. E o PCB entrou em sua
fase terminal. Este é um período da história dos comunistas brasileiros que
está a reclamar pesquisas mais cuidadosa – até agora, carecemos de estudos que
transcendam as paixões e os oportunismos.
Na luta
contra a ditadura, entre as forças e protagonistas que objetivamente se
situavam na trincheira democrática, existiam alternativas táticas e
estratégicas diferentes. Estou convencido de que, até 1979, a postura do PCB
foi a mais correta. A derrota da ditadura, conforme o PCB, não seria resultado
da ação heroica e destemida de alguns vanguardistas dando tiros, mas da luta de
massas através de uma ampla frente democrática. Penso que esta perspectiva do
PCB revelou-se correta, revelou-se historicamente exata. Mas penso que a partir
daí (e também tenho responsabilidades neste processo, uma vez que, a partir de
1982, passei a fazer parte da direção central do Partido), o PCB não soube
avaliar corretamente a conjuntura aberta com a clara erosão das bases de
sustentação da ditadura; não soube, em especial, ponderar o protagonismo
imediato dos novos contingentes proletários, nem a disposição de frações
burguesas de, naquele momento, jogar numa disputa por hegemonia. Disto resultou
a defesa da mesma frente democrática da conjuntura anterior, sem a incorporação
de novos processos que emergiam com a crise da ditadura. Penso que está aí a
raiz dos equívocos que cometemos na primeira metade da década de 80.
Ou muito me
engano ou o PCB ficou prisioneiro da correção da sua política até 1979 – mas o
quadro houvera mudado, e nós não fomos capazes de perceber estas mudanças. Este
é o momento em que quase todos meus amigos estão saindo do PCB; ora, eu não
entrei no PCB pelos meus amigos, mas pelos tamancos dos trabalhadores da
tecelagem aos quais eu fiz referência, pelo meu barbeiro, e peço que você
também faça referência ao Luiz Henrique de Oliveira, o “Gato Preto”, que era
mecânico do Departamento Autônomo de Bondes lá de Juiz de Fora, o camarada que
primeiro me entregou a Voz Operária – meus compromissos eram com eles e os
operários da minha cidade... Esta foi a minha decisão: não vou sair do Partido,
vou ficar até apagar a luz.
Você pode
rir disso. Eu tive uma prisão séria nos anos 1970, em decorrência da qual o
Partido não teve nenhuma perda, até porque não fui preso em razão do PCB, mas
de um grupo ao qual dei apoio durante os dezoito meses em que, por discordar da
posição do Partido em face da “fraternal ajuda” à Tchecoslováquia, em 1968,
estive fora da organização. Ficar no Partido até apagar a luz pode ser
engraçado, especialmente se as razões não forem de grande magnitude histórica. Eu
não tenho essas grandes razões: fiquei simplesmente por causa das minhas
pequenas razões, limitadinhas, as razões da minha terra e dos camaradas que me
abriram as portas do comunismo – o barbeiro Milton Fernandes, o “Gato Preto”, e
os trabalhadores que teimavam em manter vivo, no final dos anos 60, um Partido
perseguido.
Fiquei. Fui
eleito para o Comitê Central em 1982 e para a Comissão Executiva. Cumpri, nos
limites da minha capacidade, as tarefas que recebi e assim fiz até 1989. Entre
1982 e 1987 fui editorialista da Voz da Unidade e, de fato, editor do semanário
durante o período em que Noé Gertel exerceu uma tarefa no exterior.
Nesse
período, minha intervenção acadêmica foi reduzida. Quando o Ianni tem comigo
uma conversa decisiva, em finais de 1986, decido voltar de fato à universidade
– e, para isto, contei com a ajuda de companheiras da Faculdade de Serviço
Social da PUC-SP. A partir de 1989, deixei a condição de profissional na Voz da
Unidade e, numa conversa formal com o Malina, então secretário-geral do PCB,
concluímos que eu não teria mais, de fato, tarefas dirigentes. No Congresso de
1992, quando se dá a formação do PPS, eu e mais outros companheiros (Raul
Mateos Castell, Celso Frederico, Noé Gertel, Antonio Roberto Bertelli e Martin
César Feijó) formalizamos uma proposta alternativa, a da criação de um “fórum
nacional de comunistas” – para que se tenha uma ideia da “democracia” que
reinou naquele congresso, o presidente da mesa, um dirigente sindical bancário,
nem se deu ao trabalho de ler a nossa proposta... Ela foi sumariamente
arquivada. Nascido o PPS, eu, que sou marxista e comunista, caí fora. Penso que
no PPS, onde estão alguns amigos meus, há gente sincera e honesta – mas, de
fato, essa agremiação, a meu juízo, nada tem a ver com o histórico do PCB.
Desde então, colaboro com grupos de esquerda e movimentos sociais
anticapitalistas, mas venho tocando mesmo a minha viola é na universidade. E,
como não tenho ilusões quanto às funções desta instituição, você pode imaginar
como é árdua a tarefa da sobrevivência nesses tempos difíceis.
NT – Já na UFRJ, você, Carlos Nelson Coutinho,
Marilda Iamamoto, Nobuco Kameyama e outros são responsáveis por certa renovação
do Serviço Social e, principalmente, por um polo de resistência do ponto de
vista do marxismo. Como foi esta experiência?
JPN – No
caso específico do Serviço Social, a resistência à ditadura não passou
essencialmente pelo Partido Comunista ou por sua influência: deveu-se –
especial, mas não exclusivamente – às lutas de companheiros da esquerda
católica. Marilda Iamamoto, por exemplo, (e poderia citar muitas companheiras
mais), vem da esquerda católica. Eu diria que a presença dos comunistas no
Serviço Social foi, até então, uma presença residual. E, nos anos 1980, quando
setores da intelectualidade experimentaram uma esquerdização generalizada, o
marxismo que absorveram foi, em geral, uma gripe passageira também no Serviço
Social – muitos assistentes sociais, “marxistas” nos anos 1980, logo se
reciclaram aos novos tempos, transformaram-se em “habermasianos” e alguns
continuaram – digamos: “evoluindo” – até chegar às teses pós-modernas...
O Serviço
Social, na UFRJ, parece-me um caso singular. Nos anos 1980, cria-se uma
conjuntura particular, graças ao protagonismo de um grupo de professores liderados
por Maria Helena Rauta Ramos e Maria Inês Sousa Bravo e ao apoio de Horácio
Macedo, então Reitor da UFRJ, que torna possível a confluência de docentes
muito qualificados, marxistas e não marxistas, no debate do Serviço Social na
UFRJ. Essa conjuntura permitiu à Escola de Serviço Social da UFRJ reunir, na
pós-graduação, figuras bem diferenciadas: Nobuco (que, antes, militara na
esquerda católica e depois no PCdoB), Marilda (oriunda da esquerda católica e,
mesmo não vinculada organicamente ao PT, bem próxima a este partido), Carlos
Nelson (que saíra do PCB e se aproximava então do PT, do qual se desligaria
anos mais tarde para ingressar no P-SOL), Jean-Robert Weisshaupt (um belga
inteligentíssimo, que lia Marx com vieses anarcóides), José Maria Gómez (um
argentino genuinamente de esquerda e de sólida formação intelectual) e eu.
Posteriormente, agregaram-se a este núcleo original docentes cuja inserção na
esquerda é nítida – como Yves Lesbaupin e Eduardo Mourão Vasconcelos.
Com este
grupo à frente, a pós-graduação em Serviço Social da UFRJ se tornou um centro
de referência na pesquisa e, também, um polo de resistência, no interior do
qual a incidência marxista era notória – mas, frise-se, jamais tivemos uma
pós-graduação “marxista”: sempre entendemos que a universidade não pode ser uma
“escola de partido”. É fato que, do final dos anos 1980 ao fim dos anos 1990,
aquela incidência peculiarizou a pós-graduação em Serviço Social na UFRJ. Eu
diria que, neste período, este programa de pós-graduação constituiu efetivamente,
no Serviço Social brasileiro, um elemento de renovação, de polêmica e de
resistência. Mas não esqueçamos que, no mesmo período, outros centros de
formação pós-graduada prosseguiam nas perspectivas críticas que já avançavam
antes das mudanças na UFRJ – recordo as pós-graduações da PUC-SP, onde ainda
rebatiam as influências de Florestan Fernandes, Octavio Ianni e Evaldo Vieira,
e onde assistentes sociais (como Maria Carmelita Yazbek) protagonizavam papéis
de vanguarda, e da UnB, onde atuavam Vicente Faleiros e Potyara Pereira.
Subsequentemente, outros centros se agregaram ao que se pode chamar de
“vanguarda do Serviço Social” – neles operando, por exemplo, intelectuais críticos
mais jovens, como Ivete Simionato, em Santa Catarina, e Ana Elizabeth Mota, em
Pernambuco. Mais recentemente, nos anos 2000, as pós-graduações da UERJ e da
UFMA passaram a fazer parte desse circuito de formação avançada. E creio que a
pós-graduação da UFRJ contribuiu para a ampliação desse espectro de programas,
inclusive formando alguns de seus quadros e rebatendo inclusive no exterior,
graças aos convênios internacionais e à presença de estudantes
latino-americanos e africanos em nossos cursos.
NT – Os anos 1980 e 1990 foram marcados, no
universo acadêmico, pela ofensiva do pensamento pós-moderno, aquilo que Zizeck
denomina de “agnósticos da new-age”, com afirmações contundentes contra alguns
dos pressupostos do pensamento marxista. Como você avalia a relação do marxismo
com a universidade brasileira?
JPN –
Parece-me que o pensamento marxista foi sempre residual na universidade
brasileira – este não é um fenômeno recente, ainda que, como você bem observa,
tenha se acentuado nos últimos anos, refletindo, aliás, uma atmosfera
ideológica de enorme abrangência internacional. Eu diria, ademais, que, entre
nós, não só o marxismo, mas o próprio espectro ideopolítico da esquerda sempre
foi marginal na academia.
O fato de em
algumas universidades terem se abrigado, no passado e no presente, alguns
pensadores marxistas não deve levar a uma superestimação do papel do marxismo
na vida acadêmica. Penso que a residualidade do marxismo na universidade
brasileira é um fenômeno histórico, que precede de muito o próprio golpe de
1964. Veja que não são poucos os que consideram um verdadeiro fato histórico a
constituição, na USP – que, sem dúvidas, é uma célebre vitrine da nossa
universidade pública –, na passagem dos anos 1950 aos 1960, de um seminário
sobre Marx, do qual participaram, entre outras, figuras importantes como Ianni
e Gianotti. E isto nos anos 1950/1960... Quando, fora da universidade, Caio
Prado Jr. e Nelson Werneck Sodré já existiam e influíam há muito!
Julgo que
devemos refletir seriamente sobre o que se me afigura um “caso paradigmático”
da relação entre a universidade brasileira e o pensamento marxista: a
trajetória de nossa maior figura de cientista social, Florestan Fernandes. Não
me parece um acaso que o essencial da obra marxista de Florestan tenha sido
elaborada após a sua exclusão da chamada “comunidade acadêmica”. A mesma
“comunidade acadêmica” que praticamente ignorou as contribuições de Astrogildo
Pereira no âmbito da política cultural, de Alberto Passos Guimarães no quadro
da questão agrária e das “classes perigosas” ou de Rui Facó no que toca ao
cangaço. O exílio desses nomes, e de outros, do horizonte universitário
brasileiro também é sintomático.
Decerto que,
atualmente, há importantes professores assumidamente marxistas que dispõem de
espaços em núcleos de pesquisa, e há mesmo tanto em universidades “centrais”
como “periféricas” (e esta qualificação deve vir entre aspas), alguns nichos de
pensamento marxista. Mas este marxismo – que alguém poderia, com alguma ironia,
qualificar como “marxismo legal” – que, ao que sei, desperta muito interesse
entre os estudantes mais inquietos e é bastante produtivo, ainda me parece
absolutamente marginal se comparado às correntes teóricas conservadoras e
neoconservadoras.
NT – A Universidade sempre teve certo traço
predominantemente conservador?
JPN – A meu
juízo, uma condição para compreender a relação entre a nossa universidade e o
pensamento marxista é reconhecer o caráter absolutamente elitista e antipopular
da universidade brasileira. Já aludimos, nesta conversa, à natureza desta
instituição e não cabe repetir o que já foi dito – basta reiterar que só
tivemos uma “reforma” (e, neste caso, as aspas devem ser muitas!) universitária
no final dos anos 1960 e operada pela ditadura! Entre nós, o movimento que teve
início em Córdoba, em 1918, tardou meio século para chegar aqui – e sabemos de
que modo chegou, se é que chegou... Temos uma das mais baixas taxas de
escolarização e matrícula no ensino superior de toda a América. E quando
consideramos a alocação dos estudantes universitários, é assombrosa a
hipertrofia da universidade privada – que (salvo as honrosas exceções de
sempre, confirmadoras da regra mais geral) constrói o que chamo de uniesquinas
e unishoppings, isto é, universidades de esquina ou de shopping centers, sem
outro fim que a reprodução de saberes convenientes ao establishment e sem
outros meios que a exploração de professores e estudantes. Por menos alentador
que seja o quadro da universidade pública, ele é, em geral, quase paradisíaco
se o comparamos com a universidade da chamada iniciativa privada.
NT – Hoje, no início do século XXI, com a grande
crise do capital que vivenciamos, o debate sobre o marxismo ganha novas
colorações, uma vez que alguns pressupostos de Marx parecem confirmados. Como
você vê este momento?
JPN – O
quadro mundial contemporâneo, inclusive a crise econômica atual, é
absolutamente incompreensível sem Marx. Absolutamente incompreensível!
O que
aprendemos com Marx? Primeiro: capitalismo é crise. A crise não é um elemento
aleatório, episódico, uma enfermidade que de modo arbitrário, casual e
inexplicável acomete o capitalismo: Marx demonstrou cabalmente que a crise é um
constitutivo da dinâmica capitalista. Quanto a isto, o mundo do século XX e a
sua entrada no século XXI ratificam Marx à exaustão.
Segundo:
capitalismo é produção exponencial de riqueza social e reprodução simultânea e
necessária de pauperismo, não necessariamente pauperismo absoluto, mas sempre
pauperismo relativo. Quando se vê o Banco Mundial, esta santa e credível
instituição, no fim do século XX e no início do século XXI, proclamando ser
necessário combater a pobreza, quando se registram os “Objetivos do milênio” da
ONU – eis aí a confirmação da correção da análise de Marx.
Mas não é
só: veja a contínua e recente concentração e centralização de capital.
Quaisquer que sejam as fontes dos dados que você tome, em especial os dos
últimos 25 anos, eles são eloquentes no que toca à concentração e à
centralização de capitais em todas as latitudes e longitudes, noutra claríssima
comprovação – e este é o terceiro ponto do que Engels chamava de “a prova do
pudim” – da análise marxiana sobre a dinâmica capitalista.
Enfim, há,
ainda, uma quarta demonstração irrefutável da correção das projeções marxianas:
o desenvolvimento desigual e combinado, destacado explicitamente por Trotski,
mas que já está posto em Marx. O que se verifica acentuadamente nos últimos
trinta anos, para não falar do século XX inteiro? Verifica-se claramente o
distanciamento entre países pobres e países ricos, assim como – de forma mais
agudizada a partir da recuperação da grande crise econômica de meados dos anos
1970 – uma polarização interna aos países pobres e aos países ricos.
Evidente
que, à medida que não consideramos Marx um profeta onisciente ou o fundador de
uma nova seita salvadora ou messiânica – e não o consideramos porque não somos
nem devemos ser fundamentalistas em nenhum sentido –, mas o tomamos como um
teórico social condicionado pelas dimensões históricas, não assumimos a sua
obra como uma soma de verdades intocáveis e eternas. Sem Marx, não
compreenderemos absolutamente nada do tempo presente; mas isto está longe de
significar que apenas com ele, com o que nos legou, poderemos compreender este
tempo presente. Apenas para citar um dentre vários exemplos: o Manifesto
Comunista contém, a meu juízo, uma concepção que se revelou equivocada – a
concepção segundo a qual, na sociedade burguesa, as contradições e os conflitos
iriam se simplificar. A história provou que não é assim: pelo contrário,
verificamos uma complexificação e uma multiplicação de conflitos. A projeção
contida no Manifesto não se realizou; diferentemente, registramos um
crescimento cada vez mais diversificado e tenso de conflitos, oposições e
demandas corporativas, grupais, categoriais etc., o que põe, mais do que nunca,
a exigência de uma instância de universalização, que historicamente se
corporificou no partido político. E, apesar de muita gente ilustre ter
decretado os funerais dessa instância, ela me parece insubstituível.
Retomo o fio
da meada: sem Marx, nada compreenderemos da contemporaneidade. Mas somente com
Marx, e apenas com o que a tradição marxista já produziu, não teremos condições
de compreendê-la radicalmente – para, é óbvio, transformá-la radicalmente. Não
é por acaso que o velho Lukács punha como tarefa aos marxistas o que designava
como a elaboração de um O capital para o século XX. Esta tarefa ainda está por
cumprir-se, agora cobrindo as realidades inéditas emergentes nesta entrada do
século XXI. E é uma tarefa imensa, que demanda o esforço coletivo de gerações!
Ela exigirá o tratamento cuidadoso não só dos novos processos emergentes na
dinâmica capitalista, mas, também, um trato igualmente cuidadoso da produção
teórica e cultural não-marxista que se acumulou nos últimos decênios – de forma
a extrair dela os elementos válidos. Aqui, o rigor teórico-metodológico será
imprescindível (vale dizer: a ortodoxia metodológica, tal como Lukács a
determinou em 1923), como imprescindível será a abertura mental para, à base
deste rigor, incorporar criticamente as conquistas teóricas operadas noutros
quadrantes intelectuais.
NT – O marxismo, segundo você, atravessou a chamada
crise de paradigmas?
JPN –
Entendo que a esquerda, e não só os marxistas, sofremos derrotas políticas de
larga duração histórica no último terço do século XX. Entendo também que
debilidades teóricas – e, aqui, no caso da tradição marxista, pesou
ponderavelmente a hipoteca do dogmatismo de que a grande responsável foi a
autocracia stalinista – contribuíram para tais derrotas. No entanto, ao
contrário de boa parte das viúvas da esquerda, carpideiras dos reais e
eventuais erros cometidos e que hoje migram alegremente para outros
“paradigmas” (e, de novo, peço aspas) teóricos, não creio que as debilidades
teóricas respondem inteiramente por aquelas derrotas – o que nelas contou de modo
decisivo foi a relação de forças real com a direita e com o conservantismo,
enfim, a força material efetiva do capital. Isto não quer dizer que a esquerda
e, em especial, os marxistas, acertamos em tudo e que temos resposta para tudo.
Estamos longe disso. Temos que pesquisar e investigar a realidade, temos que
estudar e te¬mos que aprender não só com nossos adversários, mas até com nossos
antagonistas. É quase um acacianismo recordar que Marx não leu marxistas, leu
pré-marxistas, não-marxistas e antimarxistas. Devemos fazer o mesmo, mas hoje
já com o suporte e o benefício da nossa ortodoxia metodológica – de novo, no
sentido em que Lukács a formulou: há uma série de ideias, conclusões e
concepções particulares de Marx que nós podemos considerar anacrônicas; o
essencial, porém, é o método por ele elaborado para operar a crítica da ordem
social comandada pelo capital.
Posso estar
equivocado, mas penso a arquitetura teórica e prática-política de Marx – vale
dizer, sua teoria social – como fundada sobre três eixos, estruturalmente
articulados. Um, o método dialético materialista, que ele elaborou a partir da
sua crítica a Hegel. Outra, a perspectiva da revolução, isto é, a concepção de
que é possível transformar substantiva e radicalmente o mundo burguês – e isto
mediante uma prática política classista de que o sujeito é o “núcleo duro” do
conjunto dos trabalhadores e considerando que tal possibilidade está inscrita
no movimento social real. Finalmente, a teoria do valor-trabalho, sem a qual a
teoria da mais-valia é insustentável e somente com o recurso à qual é possível
esclarecer o caráter explorador da sociedade comandada pelo capital. Estou
convencido de que o pensamento de Marx sustenta-se na articulação desses três
eixos – e a supressão de um deles compromete vitalmente toda a arquitetura
marxiana. Não é por acaso, aliás, que, desde Bernstein, todas as tentativas
(chamem-nas revisionistas ou qualquer outra coisa) para tornar Marx palatável à
ordem trataram de vulnerabilizar um, dois ou até mesmo todos esses eixos.
NT – E, num balanço do século XX, como ficam as
experiências de transição socialista?
JPN –
Comecemos por 1917. Na cabeça de Lênin, chefe de Estado aos 47 anos, e não
chefe de um Estado qualquer, mas do Estado Soviético, a Revolução Russa era um
momento de ruptura que permitiria conectar a revolução socialista no Ocidente
com a revolução democrática, não mais que isso, no Oriente. Ele, Lênin, jogou
todas as suas forças nestas duas frentes. É evidente que a Terceira
Internacional se cria para estimular a revolução na Alemanha – mas não é por
acaso que Lênin apoia Kemal Ataturk, os jovens revolucionários turcos, não é
por acaso que ele vê com esperança a luta de Sun Yat Sen na China. O fracasso,
o aborto ou, se se preferir, a derrota da revolução alemã e os impasses da
revolução democrática no Oriente deixam o último Lênin numa posição de
desespero – é só examinar os seus textos derradeiros para constatá-lo. E a
alternativa mais imediata que se lhe punha era, pura e simplesmente, a
desistência, isto equivalendo – depois da vitória sobre os terroristas brancos
e as tropas estrangeiras de intervenção – à entrega do poder à reação. É
evidente que um líder do calibre de Lênin jamais capitularia. E, estou
convencido, não compartilharia da posição de Trotsky que, naquelas condições,
conduziria à aventura.
Na sequência
da morte de Lênin, o dilema posto aos seus seguidores, dos meados da década de
1920 ao seu final, era defender o que se tinha conquistado. Penso que, quanto a
isto, a solução que Stalin batizou com o equívoco lema do “Socialismo num só
país” era a única viável para garantir o Estado Soviético. Sabemos bem que
socialismo num só país é ficção, mas, no plano prático-imediato, era a forma de
assegurar que os Romanov e sua gente ou Kerensky e os seus não regressariam.
O fato é que
a experiência socialista foi insulada, numa sociedade atrasada e sem quaisquer
tradições democráticas mínimas – e daí derivou grande parte de seus piores
traços, entre os quais o mais evidente foi a fusão do Partido com o Estado e
sua mútua identificação. E é claro que isto nada tem a ver com a restituição do
efetivo papel do Estado no processo de construção da nova sociedade – parece-me
inconteste que, sem um Estado poderoso, não se matrizará nenhuma relação social
decisiva e nova.
Não posso,
como você compreende, entrar aqui em detalhes. Mas foi nesse quadro
extremamente desfavorável que se constituiu a URSS. E no balanço global da
experiência que ela protagonizou – balanço que, a meu ver, ainda está por
fazer-se –, dois elementos me parecem fundamentais. Primeiro: sem a União
Soviética, a luta exitosa contra o fascismo (que continuo a considerar o pior
inimigo da humanidade) seria impensável. Segundo: as conquistas alcançadas
pelos trabalhadores em boa parte do Ocidente (penso, por exemplo, em vários
avanços que se deram no marco do que se chamou Estado de Bem-Estar Social)
também seriam muito distintas se abstraíssemos do mapa a União Soviética;
quanto a isto, creio que as lutas do proletariado ocidental foram amplamente
favorecidas pelo pavor que o comunismo (leia-se: da União Soviética) inspirava
na burguesia. E ainda há considerar o papel da União Soviética no apoio às
lutas de libertação nacional – que desestruturaram o velho sistema colonial –
conduzidas em África e Ásia.
No plano
interno, qualquer balanço da experiência soviética deve considerar que ela
significou um enorme avanço nos direitos sociais. Só pode negar este fato quem
não conheceu a realidade soviética, não apenas da Rússia, como da Polônia, da
Hungria, da Bulgária, da Romênia etc. Podemos operar aqui com a contraprova: a
dissolução da União Soviética e do que foi chamado de “mundo socialista”
constituiu uma concreta e efetiva regressão. Os trabalhadores da Europa Central
e Oriental perderam direitos, ganhos e conquistas – quem tem dúvidas, que dê
uma olhada na Alemanha da senhora Ângela Merkel.
Sem me
alongar, eu não hesitaria em fazer a seguinte afirmação: a experiência do
chamado socialismo real, socialismo burocrático, socialismo de caserna – dê o
nome que você quiser – foi progressista para o conjunto da humanidade. Ela é
paradigmática? Não, não é. Nela se confundiu socialização com estatização, nela
se gestaram fenômenos e processos com os quais não podemos mais ter nenhum
compromisso (asfixia de liberdade civil, aparelhos repressivos, segmentos
burocráticos e burocratizantes etc). E, com estes traços, ela não estimulou (e,
dadas as suas condicionalidades, não poderia fazê-lo) o que penso ser o elemento
central da construção do comunismo: a autogestão. É preciso dizer isso com a
máxima clareza, sempre lembrando, todavia, que aquela experiência não se deu na
pureza de um laboratório, mas no confronto de classes em escala planetária.
Toda essa
rica, complexa e contraditória experiência é hoje um capítulo pretérito da
nossa história. O mundo mudou em 1991, quando a bandeira soviética foi arriada
e subiu a dos Romanov. Mas o mundo não apenas mudou: o mundo piorou.
NT – Lukács dizia que ser socialista, mas não
defender a URSS, é como um pai que diz: gosto de meu filho, desde que ele não
tenha orelhas tortas. Concordando com você sobre o papel que teve a URSS no
século XX, queria te provocar. Como analisar a transição e seus impasses como
um processo de emancipação humana que não se completou?
JPN –
Respondo-lhe de forma também provocativa. Ao contrário de muitos companheiros e
camaradas, não estou perplexo diante do mundo contemporâneo, não estou perdido
e nem à caça de um “novo paradigma”.
Continuo convencido
de que o socialismo supõe um grande desenvolvimento das forças produtivas e um
proletariado socialmente (o que não quer dizer estatisticamente) ponderável e
politicamente organizado. Praticamente nenhum desses elementos estava presente
nos processos de transição que presenciamos no século XX. Ora, as condições
contemporâneas os põem sobre o tapete, mas com dimensões muito diferenciadas e,
por isto, as nossas projeções também requerem um redimensionamento profundo.
Mas este
redimensionamento, se não quisermos aceitar o truque fácil contido na retórica
de que é preciso “reinventar” o socialismo, deve partir de dois pontos
inarredáveis: supressão da propriedade privada dos meios fundamentais de produção
e liquidação de qualquer forma de exploração do trabalho. Se isto não pôde ser
efetivado em 1917, em 1945/1948 ou imediatamente depois, não significa que não
deve estar prioritariamente na agenda contemporânea dos revolucionários.
Somente sobre esta base programática será possível reconstruir o movimento
socialista revolucionário. Esta reconstrução não está à vista, mas não tenho
dúvidas de que é factível e não se situa num horizonte utópico – ela arranca do
que aí está, arranca do movimento social real. Porém, não se direcionará
“naturalmente” – e é aí que entra em jogo a responsabilidade histórica das
vanguardas.
NT – José Paulo, gostaria que você nos falasse um
pouco sobre as perspectivas da esquerda no Brasil. Nós fechamos um ciclo e
estamos abrindo um novo. Durante os anos 1980 e 1990 vivemos a hegemonia do PT
e agora, estou convencido, se abre um novo ciclo. Como você vê este cenário? Os
projetos hoje colocados estão à altura de nossos desafios?
JPN –
Concordo com você que se encerra um ciclo e penso que o primeiro indicador
nítido desse encerramento foi a crise terminal do velho PCB, no final dos anos
1980.
Acredito
que, entre o ciclo que se fecha e o ciclo que se abre, é fundamental construir
uma ponte – a imagem é exatamente esta – que facilite aos homens e às mulheres
que não participaram daquelas lutas, ou que não possuem a sua memória, o
enfrentamento de uma conjuntura que é nova, com novos desafios, novos problemas
e novas questões beneficiando-se do que foi fecundo no passado. Numa palavra,
julgo fundamental que se criem condições para que as novas gerações sintam-se
legatárias do patrimônio de lutas do passado, distinguindo o vivo e o morto
nessa tradição. Esta é uma tarefa com a qual todos nós, os mais velhos, devemos
estar comprometidos.
Os marxistas
têm, porém, responsabilidades redobradas em face dos desafios que estão postos
à esquerda brasileira. Em primeiro lugar, a responsabilidade teórica. Também no
Brasil, foram os marxistas – nas várias vertentes da tradição marxista – os que
se dedicaram aos estudos mais decisivos da realidade brasileira; há que
prosseguir, avançar, desenvolver o acervo de que dispomos e que hoje não dá
conta da contemporaneidade. Em especial, cumpre analisar concretamente a
natureza da economia brasileira, a nossa estrutura de classes, a sua relação
com os núcleos de poder econômico e político, a efetividade do Estado
brasileiro, o padrão de integração da nossa economia com o sistema
imperialista. Por outra parte, cabe avançar rapidamente nas problemáticas da
metropolização, da cultura e da ecologia.
Mas as
tarefas prático-políticas não são menores. A mais decisiva é a que se refere à
organização do povo trabalhador – e, nesta, ressalta a importância do partido
político. Sem a constituição de um partido político que, com claro enraizamento
classista, universalize as diferenciadas demandas anticapitalistas e dispute
abertamente a hegemonia com a burguesia e com os segmentos social-democratas
tardios pouco se avançará. A ênfase classista, neste domínio, parece-me
essencial: retomar e reconstituir, nas condições contemporâneas, a perspectiva
de classe (assim como o “ódio de classe” – atenção: de classe) é condição sine
qua non para a construção do partido de que ainda carecemos. É desnecessário
observar que esta é uma questão central e mais: que ela só pode ser conduzida
com êxito se se considerar que, a priori, não há “escolhidos” – não é a
correção teórica que determina o sucesso do empreendimento político, ainda que
ela seja indispensável. A construção de uma instância partidária desse gênero
não pode operar-se a partir de qualquer exclusivismo, mas, antes, incorporando
as múltiplas experiências do movimento social real. Numa palavra: a
constituição desse instrumento partidário deve resultar tanto da vontade
política, orientada teoricamente, quanto da extração das principais tendências
do movimento profundo e real que põe em xeque a ordem burguesa e o comando do
capital. Por isso, certamente os seus sujeitos serão múltiplos e sua
articulação algo difícil – mas necessário e possível.
Penso que os
últimos trinta anos, tanto em escala nacional quanto em escala mundial,
registraram ganhos expressivos para o pensamento funcional à ordem burguesa,
seja ele abertamente apologético, seja – como diria Lukács – indiretamente
apologético. Mas não há apologia, direta ou indireta, que possa ocultar e
mistificar a realidade para todo o sempre. A crise contemporânea do mundo do
capital abre para nós uma oportunidade concreta de, exercitando a crítica
radical, fomentar a reconstituição e a renovação de uma cultura política
socialista.
NT – Quanto à crise atual, já se argumenta que
teria sido resultado da ausência de mecanismos de regulação; portanto, tudo se
resolveria a partir do momento em que o Estado, responsavelmente, combine a
virtude do mercado com a responsabilidade da regulação. Tenho a impressão que o
debate em 2010 será apresentado aos trabalhadores como se fosse restrito a qual
tipo de regulacionismo nós queremos. Como você avalia isso?
JPN – Nos
últimos 20 ou 25 anos, o capital, de maneira intencional, consciente,
lucidamente – e quando falo agora e aqui em capital, não me remeto a algo
impessoal, mas a um processo operado de grupos, instituições, instâncias, ou
seja, através de suas organizações sociais e seus agentes –, destruiu todas ou
a maioria de suas instâncias regulatórias. Penso que não será fácil recompor a
curto prazo sistemas regulatórios do tipo dos que se seguiram a Bretton Woods.
Sobretudo, penso que o movimento contemporâneo do capital, que sempre foi
avesso a qualquer tipo de regulação, se tornou mais avesso ainda. Não estou
afirmando que é impossível reformar o capitalismo contemporâneo, mas julgo que
a margem de manobra para reformá-lo, o espaço real de reforma, é muito menor do
que aquela existente no imediato segundo pós-guerra. De qualquer forma, não
tenho dúvidas de que, a curto prazo, o capital ingressará numa “nova ordem” – a
questão verdadeira está em saber, primeiro, dos seus custos humano-sociais
(inclusive os ecológicos) e, segundo, da sua operacionalidade mesmo a curto
prazo. Quanto aos seus custos humano-sociais, não tenho qualquer dúvida: a
eventual “nova ordem” capitalista será ainda mais danosa à massa dos
trabalhadores de todo o mundo. No que toca à sua operacionalidade, a questão me
parece em aberto e por uma razão simples: deixado à sua lógica imanente, do
capitalismo só resulta mais capitalismo (o que hoje significa barbárie); apenas
a intervenção política dos trabalhadores pode conduzir à solução da sua
ultrapassagem e superação. E, por agora e a curto prazo, não vislumbro a
possibilidade concreta dessa intervenção...
NT – E, então, em relação ao futuro...
JPN – Sou
otimista em relação ao futuro – se tomado em termos muito mediatos. O futuro
não haverá de ser uma reprodução ampliada do presente – a humanidade pode
derrotar a barbárie. Sou tão otimista, meu caro, que estou convencido de que
não vou morrer antes de ver o renascimento do movimento socialista
revolucionário. Será um movimento bem diferente daquele no qual eu e você fomos
educados, há de ser algo novo - e melhor.