Néstor Kohan
Morre um grande amigo e
companheiro, o pensador marxista brasileiro Carlos Nelson Coutinho, introdutor
de Gramsci no Brasil e interlocutor de Gyrgy Lukács (com quem trocou uma série
de cartas). Com um sorriso irônico costumava repetir que “eu não me desloquei à
esquerda, sigo sendo o mesmo. Os demais é que caminharam para a direita”...
Carlos Nelson era muito
irônico. Lúcido, erudito, amável, fraternal, terno, divertido. Gostava de
conversar e beber em companhia. Apesar de profundamente brasileiro, não gostava
de dançar. Se sentia comunista, e manteve a coerência em torno dos ideais
comunistas, ainda que tenha ido mudando de organização na medida em que estas
se “endireitavam”. Começou militando no PCB, depois se incorporou ao PT e
finalmente ajudou a fundar o PSoL. Apoiava com entusiasmo o MST.
É bem sabido que Coutinho introduziu os Cadernos
do Cárcere de Antonio Gramsci no Brasil. Menos conhecido é seu papel como
introdutor de György Lukács.
No Brasil, os primeiros livros
de Lukács aparecem em idioma português a partir de 1965: Ensaios sobre
literatura [1965]; Literatura e humanismo [1967]; Os
marxistas e a arte[1967]; Introdução a uma estética marxista
; Marxismo e teoria da literatura e Existencialismo ou
marxismo? (Deve-se destacar que não se conta entre eles o melhor de todos:História
e consciência de classe).
Dois dos principais
introdutores de Lukács no Brasil são Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder,
então militantes da corrente cultural do Partido Comunista. Ambos jovens,
mantinham naquela época fortíssimas simpatias por História e
consciência de classe. Não obstante, sua correspondência com Lukács – na
qual lhe iam propondo nomes de livros seus para serem traduzidos e publicados
no Brasil – os foi apartando deste rumo.
O filósofo da Hungria tratava
de convencê-los de que “este livro está inteiramente superado em seus
problemas fundamentais” (Carta de G. Lukács a L. Konder de 9 de junho de
1963). No mesmo sentido, o pensador húngaro insistia: “Gostaria, sobretudo,
de advertir contra uma leitura acrítica de ‘História e Consciência de Classe’”
(Carta de G. Lukács a Carlos Nelson Coutinho de 31 de agosto de 1963). Mais
tarde, uma vez que o jovem Coutinho reconhece haver seguido seus conselhos e
haver abandonado a concepção “historicista” do marxismo própria de Lucien
Goldmann, J. P. Sartre, Antonio Gramsci e do jovem Lukács, o mesmo Lukács
responde o seguinte: “Me alegro com o que você me conta, ou seja, que
superou o historicismo abstrato-subjetivista sem cair na grande moda atual do
estruturalismo” (Carta de G. Lukács a C. N. Coutinho de 18 de outubro de
1967. As 34 cartas trocadas entre os dois jovens intelectuais brasileiros e o
filósofo marxista da Hungria estão reproduzidas no volume coletivo Lukács
e a atualidade do marxismo. São Paulo: Boitempo, 2002, pp. 133-156).
Dali em diante Coutinho irá
tecendo uma síntese sutil entre a concepção política de Gramsci e a concepção
filosófica do Lukács maduro. Ambos ressignificados de acordo com a realidade
social e política brasileira na qual Coutinho militou durante toda a sua vida.
Em sua memória e como maneira
de homenagear o amigo, companheiro e querido comunista que tivemos a honra de
conhecer, reproduzimos a seguir uma síntese de sua obra e uma entrevista que
fizemos com ele no México em 1999 para o livro «De Ingenieros al Che.
Ensayos sobre el marxismo argentino y latinoamericano».
“A filosofia da práxis no Brasil”
Entrevista com Carlos Nelson Coutinho
Carlos Nelson Coutinho é um dos principais
especialistas e investigadores brasileiros sobre o pensamento de György Lukács
e Antonio Gramsci, cujas obras introduziu no Brasil. De Lukács, com quem
manteve correspondência (junto com seu companheiro Leandro Konder) durante a
última década de vida do filósofo húngaro, Coutinho traduziu Marxismo e
crítica literária; Introdução a uma estética marxista; Ontologia do ser social.
Hegel e Ontologia do ser social. Marx.
Não por acaso, seu primeiro livro de crítica
literária, Literatura e humanismo. Ensaios de crítica marxista (Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1967) é fortemente atravessado por um élan
lukácsiano.
Poucos anos depois, utilizando amplamente a
conceituação lukácsiana madura da Ontologia do ser social acerca da
“razão dialética e da riqueza humanista da práxis”, o pensador brasileiro
publicou O estruturalismo e a miséria da razão (1971). Nesta obra,
precursora de muitas críticas posteriores, Coutinho questionou duramente as
distintas vertentes do pensamento estruturalista – principalmente francês –
absolutamente em voga nesses anos, personificadas em Claude Lévi-Strauss, Louis
Althusser, Michel Foucault, entre outros. Sua crítica foi uma das primeiras
desta tradição a ser sistematicamente realizada na América Latina. De todas
estas críticas, sobressai a que dirigiu contra Althusser, cujo pensamento
caracterizou como “uma posição de direita, burocrática e conservadora,
expressão do racionalismo abstrato e da epistemologia neopositivista”. Cabe
esclarecer que neste trabalho Coutinho também criticava, sempre desde a
perspectiva do último Lukács, o “subjetivismo irracionalista do humanismo
especulativo”. Ainda militando, nessa época, no PCB (organização com que rompeu
no início da década de 80 após a publicação de A democracia como valor
universal [São Paulo: Ciências Humanas, 1980]), Coutinho arremeteu
fortemente em O estruturalismo e a miséria da razão contra “a
manipulação burocrática das consciências realizada pelo stalinismo e também
pelo neostalisnismo”. Também acusou estas correntes de haver convertido o
marxismo em “uma ideologia da confiança e uma sociologia vulgar positivista”.
Junto com a obra de Lukács, Coutinho também
recebeu a influência de Antonio Gramsci, de quem traduziu em 1966 O
materialismo histórico e a filosofia de Bedetto Croce (publicado com o
título de Concepção dialética da história, Civilização Brasileira,
1966); e em 1968 Os intelectuais e a organização da cultura e Literatura
e vida nacional (também pela Civilização Brasileira). Se durante o período
1961-65 as obras do jovem Lukács e de Antonio Gramsci foram o horizonte central
no pensamento filosófico de Coutinho, desde aproximadamente 1965 até 1975 este
lugar será ocupado pelo Lukács maduro (não o Lukács de História e
Consciência de Classe, mas o da Estética e da Ontologia do
ser social). Nesse período, sua leitura filosófica fortemente lukácsiana
do marxismo remetia tangencialmente a discussão também a Antonio Gramsci, cuja
filosofia era caracterizada, em O estruturalismo e a miséria da razão,
como “um historicismo subjetivista cuja raiz remonta ao jovem Benedetto Croce”.
Não obstante, Coutinho seguia marcando a propriedade do estreito vínculo
político entre Gramsci e Lenin.
Mais tarde, provavelmente a partir de 1975, de
maneira paralela à influência política que recebeu do Partido Comunista
Italiano (PCI), principalmente de Palmiro Togliatti, mas não apenas dele,
Coutinho reconsideraria estas posições sobre Gramsci. A partir de então,
reavaliaria seu legado não só como filósofo, mas principalmente como teórico da
política. Publicaria então a primeira versão de sua Introdução a Gramsci
(1981, logo ampliada e reeditada em diversas ocasiões), onde destacaria no
autor dos Cadernos do Cárcere“ sua ontologia marxista da práxis
política” e sua operação de “conservação e superação dialética” das categorias
leninistas. Nesta obra, absolutamente laudatória do pensamento gramsciano,
ainda se ouviriam ecos do período lukácsiano, como por exemplo quando Coutinho
insiste com a tese de que existiriam “resíduos idealistas nas reflexões
especificamente filosóficas de Gramsci”.
Nos últimos anos Coutinho buscou repensar o
conjunto de sua obra anterior, explorando a fundo a possível articulação entre
seus dois grandes amores filosóficos: a obra de Gramsci e a do Lukács maduro,
entendendo ambas como duas modalidades diferentes mas complementares de
filosofia da práxis. Paralelamente, em termos políticos, tratou de fundamentar
a consigna de Rosa Luxemburgo, “Não há democracia sem socialismo, nem
socialismo sem democracia”, mas valendo-se centralmente das categoria
gramscianas de “sociedade civil” e de “Estado ampliado”. Na Argentina, deram-se
a conhecer alguns de seus trabalhos graças às traduções ao espanhol da editora
mexicana ERA.
Entre seus últimos livros publicados no Brasil se
destacam Cultura e sociedade no Brasil. Ensaios sobre ideias e formas (Belo
Horizonte: Oficina do Livro, 1990); Marxismo e política. A dualidade de
poderes e outros ensaios (São Paulo: Cortez, 1994 e 1996); Gramsci. Um
estudo sobre seu pensamento político (Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1999) e Contra a corrente. Ensaios sobre democracia e
socialismo (São Paulo: Cortez, 2000).
Entre suas traduções ao português, devem ser
mencionadas, além das de Gramsci e Lukács, As ideias estéticas de Marx
de Adolfo Sánchez Vázquez; Lógica formal, lógica dialética, de Henri
Lefebvre; Socialismo e democracia. Escritos 1944-1964, uma antologia
de Palmiro Togliatti e a História do marxismo organizada por Eric J.
Hobsbawm (publicada originalmente na Itália pela Einaudi). A isto dever-se-ia
agregar a edição dos Cadernos do Cárcere – ainda em curso [referência
ao ano de 2000, quando este texto foi escrito] de Gramsci (também pela
Civilização Brasileira), com os quais Coutinho realizou uma espécie de síntese
entre a edição temática de Togliatti e a última edição crítica de Valentino
Gerratana.
Atualmente [referência ao ano 2000], Carlos
Nelson Coutinho é militante do PT [foi membro-fundador do PSoL a partir de 2004
– N. do T.] e professor e investigador do Centro de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A entrevista foi realizada
especialmente para este livro [«De Ingenieros al Che. Ensayos sobre el
marxismo argentino y latinoamericano», N. do T.].
Néstor Kohan: Em sua obra
teórica dois autores ocuparam o centro da cena: György Lukács e Antonio
Gramsci. Por que os tomou como paradigmas e interlocutores privilegiados?
Carlos Nelson Coutinho: Creio
que Lukács e Gramsci são os autores que melhor desenvolvem as indicações
metodológicas de Marx, adequando-as ao século XX e garantindo sua
perdurabilidade no século XXI. O último Lukács, ao interpretar o legado
filosófico de Marx como uma “ontologia do ser social” – que, a partir da
afirmação do trabalho como “modelo de toda a práxis social”, concebe o ser social,
ao contrário do ser natural, como uma articulação orgânica entre causalidade e
teleologia, entre determinação e liberdade –, me parece haver proposto a mais
lúcida leitura filosófica do marxismo. Gramsci, por sua vez, não só compreendeu
a essência da filosofia de Marx ao defini-la como “filosofia da práxis”, mas
sobretudo promoveu a mais lúcida e criativa renovação da teoria política
marxiana, ao formular o conceito de “sociedade civil” e, deste modo, ao
elaborar sua noção específica de “Estado ampliado”.
Além disso, penso que, não obstante algumas
divergências não essenciais, é perfeitamente possível conjugar as reflexões
destes dois grandes pensadores: por exemplo, é muito significativa a função
essencial que, em ambos, desempenha o conceito de “catarse”, que em Lukács tem
uma dimensão ética e estética e que adota, em Gramsci, uma dimensão
especificamente política. Mas, em ambos, a “catarse” aparece como o movimento
da práxis onde tem lugar a elevação da particularidade à universalidade, da
necessidade à liberdade. Penso que seria um trabalho de inestimável valor para
a história do marxismo – e trata-se de uma tarefa que me proponho a tentar –
aprofundar este estudo das semelhanças e das diferenças entre as reflexões de
Gramsci e de Lukács.
N.Kohan: No Partido Comunista
Brasileiro (PCB), no qual você militou durante vinte anos, os textos de Lukács
e Gramsci circulavam livremente ou estavam de algum modo “proscritos” em função
dos manuais soviéticos?
C.N.Coutinho: Ingressei no PCB
em 1960, isto é, depois do XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética
(PCUS), ou seja, depois da denúncia dos crimes de Stalin. A atmosfera cultural
já era, então, mais aberta. O PCB (que, diga-se de passagem, não foi jamais tão
sectário e dogmático quanto o Partido Comunista Argentino) experimentava neste
momento o desafio de outros agrupamentos de esquerda, sobretudo dos cristãos
progressistas, e por isso aceitou que seus intelectuais mais jovens propusessem
novos autores marxistas. Nos anos 60, publicamos no Brasil não somente Gramsci
e Lukács, mas também importantes pensadores da Escola de Frankfurt, como T.
Adorno, W. Benjamin e H. Marcuse. Já nos anos 60, no Brasil ninguém levava a
sério os manuais soviéticos.
Entretanto, existia uma “divisão do trabalho”
tácita: nós, os intelectuais do Partido [PCB], podíamos apresentar e defender
Gramsci e Lukács como “filósofos”, mas a definição da linha política era algo
reservado à direção do Partido. Por isso, por exemplo, foi muito unilateral a
primeira recepção de Gramsci no Brasil: ele era apresentado por nós como o mais
brilhante filósofo e crítico literário marxista, mas ficou em silêncio a
inegável dimensão política de sua obra. Isto é: o caminho estava aberto para
defender Gramsci como o promotor de uma “filosofia da práxis”, mas não como
teórico da “revolução no Ocidente”, quer dizer, como uma alternativa aos
paradigmas etapistas e rupturistas da III Internacional, a Internacional
Comunista.
N.Kohan: Algo semelhante
aconteceu na Argentina, quanto a esta “divisão do trabalho” que você menciona,
no tocante à recepção gramsciana de Agosti. Você conhecia sua obra? Ela teve
influência em sua primeira aproximação de Gramsci?
C.N.Coutinho: De Agosti, me
lembro de haver lido Defensa del realismo; Nación y cultura;
Cuaderno de Bitácora; Para una política de la cultura – todos em
espanhol – e seu único livro publicado no Brasil: Problemas atuais do
humanismo. Pelo que me lembro – pois li Agosti nos anos 60, já faz tempo –
eu estava, no geral, de acordo com suas posições, mas não diria que tenha me
influenciado. Me interessei por ele por ter lido, em 1961, seu prefácio à velha
edição argentina de El materialismo histórico y la filosofia de
Benedetto Croce. Depois, o conheci brevemente quando ele veio ao Rio de
Janeiro.
N.Kohan: Você teve, junto com
Leandro Konder, um intercâmbio epistolar com Lukács, talvez o único da América
Latina. Como aconteceu? Quais foram os temas sobre os quais conversaram? De
todas as cartas que Lukács te enviou, qual seria a que te resultou mais
interessante?
C.N.Coutinho: Meu amigo Leandro
Konder escreveu a Lukács (utilizando o endereço do Movimento dos Partidários da
Paz), creio que pela primeira vez em 1961, e o filósofo lhe respondeu com muita
simpatia e cordialidade. A partir de então, e até a morte de Lukács, em 1971,
trocamos com ele, Konder e eu, umas vinte ou trinta cartas. Certamente, a
maioria delas não tem grande interesse teórico, tratando por exemplo de edições
brasileiras de suas obras etc. Mas creio que algumas têm, sim. Por exemplo,
respondendo a Konder, em 1962, Lukács disse que conhecia a obra de Gramsci.
Depois disto, tanto em entrevistas quanto no capítulo sobre ideologia na
Ontologia do ser social, Lukács cita a Gramsci, sempre de modo crítico, mas com
inegável simpatia. Chegou a dizer que ele, Korsch e Gramsci, nos anos 20,
haviam tentado mas não tiveram êxito em encontrar soluções adequadas à questão
do “renascimento do marxismo”. E concluía dizendo: “Gramsci era o melhor de
nós”. Será que Konder chamou a atenção de Lukács sobre a importância de
Gramsci? Eu, de minha parte, estava escrevendo nos anos 60 um ensaio sobre F.
Kafka, onde tentava – contra a letra de Lukács, mas, eu acreditava, fiel ao
espírito de seu método – demonstrar que Kafka era um realista. Apresentei em
uma carta a Lukács minhas ideias centrais sobre Kafka. Bem, ele me respondeu,
em 1968, fazendo uma autocrítica explícita de seu livro La significación
presente del realismo crítico [publicado no Brasil com o título Realismo
crítico hoje, N. do T.], no qual, como se sabe, há um capítulo
absurdamente intitulado “Franz Kafka ou Thomas Mann?”. Na carta me dizia com
todas as letras que havia escrito este livro em condições desfavoráveis e que
certamente era preciso reavaliar Kafka. Trata-se sem dúvida de uma carta
importante, tanto que Nicolás Tertulián – um dos principais lukácsianos de hoje
– já a citou algumas vezes, registrando o fato de que é a única carta onde
Lukács procede a uma autocrítica explícita daquele livro e de suas posições
negativas sobre Kafka.
Uma investigadora brasileira, Tania Tonezzer,
publicou algumas destas cartas em uma revista italiana.
N.Kohan: Em seu trabalho O
estruturalismo e a miséria da razão (1971), você saiu bem cedo em ataque à
corrente althusseriana, inclusive quando seus textos causavam furor e eram moda
indiscutida na América Latina. A quem se deveu esta decisão? Foi uma resposta
frente à proliferação dos manuais de Marta Harnecker?
C.N.Coutinho: Quando escrevi O
estruturalismo e a miséria da razão, em 1971, não conhecia ainda o manual
de Marta Harnecker, que certamente não foi um evento positivo na divulgação do
marxismo na América Latina. Afortunadamente, este manual não teve no Brasil a
mesmo influência que teve em outros países latino-americanos. Quando meu livro foi
publicado (simultaneamente no Brasil e no México), eu era um lukácsiano quase
fanático, que além disso já conhecia Gramsci bastante bem: não me podia
satisfazer a leitura althusseriana de Marx, que se contrapunha a uma linha de
interpretação do marxismo – digamos, humanista e historicista – com a cual
estava e estou de acordo até hoje. Ademais, naquele momento, quando a ditadura
militar havia assumido sua face mais repressiva no Brasil, Althusser
paradoxalmente exercia influência entre nós no sentido de duas tendências
díspares, mas a ambas das quais eu me opunha. Por um lado, por intermédio de
Regis Debray, Althusser tinha forte presença nas correntes de ultra-esquerda,
que, em clara divergência com o PCB, propunham o caminho da luta armada; por
outro, também tinha ascendência sobre setores da intelectualidade que,
sobretudo na Universidade, buscavam, em nome de uma superação da “ideologia” e
do “humanismo”, reduzir o marxismo a uma pura metodologia das ciências, sem
nenhuma dimensão prática. Meu livro tinha assim, não obstante sua dimensão
teórico-filosófica, uma clara finalidade de política cultural. Era parte de uma
batalha político-ideológica, feita (devido à censura ditatorial) de forma mais
ou menos dissimulada.
Não sei se ainda estou de acordo com tudo o que
escrevi ali há quase trinta anos. Mas me agrada muito que você, que mal havia
nascido quando o livro foi publicado, ainda fale dele.
N.Kohan: Você teve alguma
relação com o grupo de marxistas ligados nos anos 60 a José Arthur Giannotti?
Que papel desempenhou este grupo no marxismo brasileiro?
C.N.Coutinho: Não, não tive
nesta época relação alguma com este grupo. Muitos de seus integrantes são hoje
em dia meus amigos pessoais, mas havia então uma clara diferença (quase uma
oposição!) entre os marxistas do Rio de Janeiro (quase todos vinculados ao PCB)
e os marxistas de São Paulo (quase todos professores universitários e sem
partido). O grupo que formou o “marxismo paulista” era já então muito
diversificado, e as divergências entre eles cresceram ainda mais com o tempo. O
grupo de São Paulo se estruturou em torno de um famoso seminário sobre O
Capital do qual fizeram parte – para que seja possível avaliar as
diferenças! – tanto meu amigo Michael Löwy quanto o atual presidente brasileiro
Fernando Henrique Cardoso [referência em 2000, ano da entrevista, N. do T.].
Agora, muitos dos integrantes deste grupo já não
são marxistas hoje: este é o caso, para não falar de Cardoso, também de
Giannotti. É certo que tiveram uma influência no marxismo brasileiro, inclusive
positiva, sobretudo porque criticaram as formulações errôneas do PCB, por
exemplo a ideia de que existiria uma “burguesia nacional” progressista e
anti-imperialista. Cardoso, por exemplo, em um brilhante livro de inícios dos
anos 70, mostrou muito bem que a burguesia brasileira queria a associação com o
imperialismo. Sustentou então que a meta de nossa burguesia era um
“desenvolvimento dependente-associado”. Mas quem poderia imaginar nessa época
que ele mesmo se converteria mais tarde em executor desta política?
Em geral, creio que alguns dos expoentes do
chamado “marxismo paulista” tiveram no Brasil o mesmo papel que tiveram os
“marxistas legais” na Rússia: leram O Capital para sustentar que
deveríamos nos “modernizar”, desenvolver as forças produtivas, mas na prática
fizeram da burguesia o ator desta modernização. Portanto, o itinerário de
Cardoso não é um raio em dia de céu azul.
N.Kohan: Você escreveu um ensaio
sobre Caio Prado Jr. Que repercussões teve na cultura de esquerda brasileira
sua obra historiográfica questionadora do relato canonizado pelo stalinismo
sobre o suposto “feudalismo” latino-americano?
C.N.Coutinho: Caio Prado Júnior
foi o primeiro a tentar seriamente uma interpretação do Brasil a partir de
categorias marxistas. Seu ensaio Evolução política do Brasil, de
1933, constitue um marco na cultura brasileira. Ainda mais decisivos são seus
livros sobre a Formação do Brasil Contemporâneo, Colônia, de 1943
[o livro foi lançado, na verdade, em 1942, N. do T.], e sua História
econômica do Brasil, de 1945.
Caio Prado Júnior – tal como Mariátegui – não
conhecia muito bem o marxismo. Pode-se ver facilmente que era escassa sua
familiaridade não apenas com as obras de Marx, mas também com as dos marxistas
posteriores. Sem dúvida, tal como o Amauta [apelido para Mariátegui, derivado
do nome dado pelos incas a seus educadores, posteriormente adotado por ele como
nome para sua revista de política, socialismo, arte e cultura, N. do T.],
intuiu muito bem os traços principais da evolução de nossos países para o
capitalismo, isto é, o fato de que esta evolução seguiu uma via “não-clássica”,
caracterizada pela permanência de traços pré-capitalistas, fortemente
autoritários e excludentes, baseados em formas de coerção extra-econômica sobre
os produtores diretos. Como Mariátegui, Caio Prado Júnior “inventou” categorias
muito semelhantes às de “via prussiana” (Lênin) e de “revolução passiva”
(Gramsci). Por isso, e neste caso também como o Amauta, Caio Prado – mesmo
tendo sido militante do PCB – sempre se opôs abertamente à “leitura”
terceiro-internacionalista do Brasil. Seu último livro significativo, de 1966,
intitulado A revolução brasileira, é uma crítica muito dura aos
paradigmas da III Internacional utilizados pelo PCB. É indiscutível sua
importância – ao lado de outros, como por exemplo Florestan Fernandes, que
jamais militou no PCB – para a construção de uma “imagem marxista do Brasil”.
N.Kohan: A publicação de seu
ensaio Introdução a Gramsci (1981) ocorreu na mesma época do
surgimento do Partido dos Trabalhadores (PT), do qual agora [2000, N. do T.]
você é militante. Houve alguma relação entre ambos os fatos?
C.N.Coutinho: Meu livro sobre
Gramsci – que teve várias edições, incluindo a mexicana que você cita, a última
das quais de 1999 com o título Gramsci, Um estudo de seu pensamento
político – foi escrito no momento de minha ruptura com o PCB. Nessa época,
era já mais ou menos consciente de que a proposta gramsciana, que leva à
formulação de um vínculo orgânico entre socialismo e democracia, era incompatível
com a herança teórica e política do PCB, ou, mais precisamente, com a herança
política da III Internacional à qual o PCB se mantinha vinculado.
Mas, naquele momento, não me parecia também que o
neonato PT fosse o legítimo herdeiro da lição gramsciana. O PT surgiu marcado
por um forte e soreliano [o termo é referente a Georges Sorel, militante e
teórico francês do “sindicalismo revolucionário” que exerceu grande influência
na virada do século XIX para o XX, tendo tido ascendência inclusive sobre o
jovem Lukács pré-marxista, N. do T.] “espírito de cisão”: não fazia alianças,
parecia preferir, ao frentismo inconsequente do PCB, um completo isolamento
político. Assim, fiquei sem partido até 1989, quando finalmente, depois de
muitas dúvidas, ingressei no PT. Creio que, enquanto isso, mudamos os dois, eu
e o PT. E continuamos mudando, talvez o PT mais que eu. Quando ingressei no PT,
me diziam que eu estava “à direita”, sobretudo porque acreditava, como acredito
ainda hoje, que sem democracia não há socialismo. Hoje, dez anos depois, no
interior do Partido, estou “à esquerda”. E sabe por quê? Porque também continuo
convencido de que sem socialismo não há democracia. Não creio que esta seja uma
situação confortável, mas me parece que meu destino é ser sempre heterodoxo nos
partidos nos quais milito. Ainda assim, minha militância resulta do fato de
que, em minha opinião, ainda não se inventou um modo melhor de fazer política
do que os partidos.
N.Kohan: Fazendo um balanço
retrospectivo de sua obra e de sua atividade militante, o que te trouxe no
plano da ética o envolvimento desde tão jovem com o universo filosófico de Karl
Marx?
C.N.Coutinho: Uma experiência
inesquecível! Lembro-me de ter lido Marx aos 15 anos. Foi um acaso muito feliz
para mim o fato de que meu pai tinha em sua biblioteca o Manifesto
Comunista. Em minha geração, não creio que ninguém tenha lido o Manifesto
sem consequências definitivas em sua formação. Com Marx, não aprendi somente a
ver melhor o mundo, a compreendê-lo de modo mais adequado. Estou seguro de que
também devo à leitura precoce de Marx o melhor de minha formação ética. Mais
tarde, Gramsci me revelou qual é a mais lúcida norma de vida para um
intelectual marxista: “pessimismo da inteligência, otimismo da vontade”. Nesta
época difícil de refluxo dos objetivos pelos quais temos sempre lutado, não há
modo melhor de nos mantermos fiéis à lição de Marx do que aquele sugerido nesta
indicação de Gramsci: uma análise fria e serena da realidade, mas que deve ser
complementada pela conservação dos motivos éticos e racionais que iluminaram e
guiaram nossas vidas.
Tradução: Victor Neves, militante do PCB
(Partido Comunista Brasileiro)