Gostaria de chamar a atenção para
um projeto em particular: o chamado “Acordo Coletivo de Trabalho com Propósito
Específico”. O nome parece pomposo, mas o conteúdo é nitroglicerina pura:
flexibilização dos direitos previstos na Consolidação das Leis do Trabalho, a
nossa CLT.
Paulo Kliass
A cada dois
anos, o mês de outubro tende a ser dominado pela pauta e pela disputa política
em torno das eleições. Até aí, tudo normal, faz parte das regras e da dinâmica
do jogo democrático. E quando o pleito se refere à renovação dos cargos no
plano municipal (prefeitos e vereadores), a agenda política nacional tende a
ficar um pouco mais amortecida. Por mais que haja uma ou outra tentativa de
“nacionalizar” o debate, o fato é que os assuntos do legislativo federal ficam
no aguardo do início do mês de novembro. Isso porque tanto o Senado quanto a
Câmara dos Deputados entram em uma espécie de “recesso branco”, uma vez que os
parlamentares estão quase todos envolvidos com as candidaturas em suas bases
pelo País afora.
Os problemas
podem surgir após o término das eleições, quando a retomada da agenda acumulada
coloca em risco a votação de temas sensíveis e polêmicos num ritmo de atropelo
legislativo. É o caso da votação do Código Florestal e os retrocessos que podem
ser introduzidos na legislação ambiental, caso o Executivo não assuma a
iniciativa firme e decidida de se contrapor aos interesses da bancada
ruralista. E um outro conjunto de itens volta à superfície, embalados pela surpreendente
disposição governamental em avançar na perigosa seara da desregulamentação dos
direitos dos trabalhadores e dos aposentados.
Flexibilização da CLT: origem no ABC
Flexibilização da CLT: origem no ABC
A validade
do famigerado “fator previdenciário” continua inabalável, com a manutenção
dessa metodologia perversa de redução dos valores mensais pagos aos aposentados
e pensionistas. A desoneração da folha de pagamentos deixou de ser uma
experiência localizada em alguns poucos setores da economia e torna-se a cada
instante mais generalizada, comprometendo perigosamente a base de financiamento
de nosso sistema de previdência social. Finalmente, gostaria de chamar a
atenção para um projeto em particular: o chamado “Acordo Coletivo de Trabalho
com Propósito Específico”. O nome parece pomposo, mas o conteúdo é
nitroglicerina pura: flexibilização dos direitos previstos na Consolidação das
Leis do Trabalho, a nossa CLT.
O que mais
impressiona é que o Ante Projeto de Lei para a
implementação de tal estratégia seja assinado por um conjunto de sindicatos de
metalúrgicos do Estado de São Paulo, liderados pelo Sindicato do ABC e com o
patrocínio explícito da CUT. O documento já foi protocolado oficialmente junto
à Presidência da República e há quem pretenda iniciar rapidamente sua
tramitação no âmbito do Congresso Nacional.
Há décadas
que o empresariado e os representantes do capital têm buscado, de todas as formas,
eliminar de nossa legislação as garantias mínimas de direitos dos
trabalhadores, tais como 13º salário, férias remuneradas, FGTS, adicional de
hora-extra, jornada de trabalho regulamentada, licença gestante, regras de
saúde e segurança no trabalho, entre tantos outros itens. Tudo isso em nome de
apagar a era Vargas da memória coletiva da Nação, com o intuito enganador de
promover a redução do chamado “custo Brasil”. Todos esses direitos são
garantidos, a duras penas, pela legislação trabalhista, capitaneada pela CLT.
Por mais antigo que seja esse código, o fato é que ele ainda serve para
assegurar direitos mínimos dos trabalhadores, a corda mais frágil numa
sociedade que há muito tempo é marcada pela desigualdade e pela exploração dos
despossuídos. Felizmente, a articulação do movimento sindical, dos setores
progressistas da sociedade e das próprias entidades atuantes na área da justiça
trabalhista sempre esteve atenta às iniciativas de mudanças retrógradas, em
geral no sentido de retirar tais direitos.
Anteprojeto da CUT: risco de retrocesso
Anteprojeto da CUT: risco de retrocesso
Um dos casos
mais simbólicos e mais recentes foi justamente a tentativa de aprovação de um
texto em 2001, durante o mandato do Presidente Fernando Henrique. A tristemente
famosa Medida Provisória nº 5.483, que abria o caminho para a flexibilização
total desses direitos, por meio de um sutil caminho - a farsa da chamada
“negociação direta” entre empresas e sindicatos. Nessa época, há mais de 10
anos atrás, o PT, a CUT e demais entidades patrocinaram um amplo movimento que
obrigou o governo a recuar e aquela tentativa de intervenção neoliberal no
campo trabalhista acabou fracassando.
Quis a
ironia da História que o movimento de quebra da espinha dorsal dos direitos dos
assalariados voltasse à pauta política pelas mãos daqueles que haviam
justamente combatido a tentativa de promover o retrocesso na legislação. A
proposta é polêmica e tem recebido muitas críticas. O Procurador do Trabalho Rafael de
Araújo Gomes elaborou um texto esclarecedor, bastante minucioso, em
que analisa o histórico e as conseqüências do tal ante projeto. O risco das
perdas a serem impostas ao movimento sindical superam em muito as eventuais
vantagens localizadas, que independem de tal mudança na lei. Para esses setores
ditos mais “modernos” do mundo industrial, as mudanças no texto da lei não são
nem necessárias, pois elas já ocorrem na prática.
É importante
frisar que o desejo de alteração nas regras da CLT atende aos interesses de uma
parcela bastante reduzida da classe trabalhadora brasileira. O caso dos
metalúrgicos do ABC é bem sintomático dessa postura. Trata-se de uma categoria
mais bem organizada, trabalhando em grandes indústrias e com uma importante história
de mobilização e de luta sindicais. A existência de comissões de fábricas e
acordos negociados diretamente com as empresas é uma prática antiga. Como esses
instrumentos contêm cláusulas mais avançadas do que as previstas na legislação
trabalhista, favorecem a falsa sensação de que a CLT seria um empecilho às
lutas dos assalariados. Nada mais enganoso.
Assim, o
fato dessa pequena amostra do universo dos trabalhadores normalmente conseguir
avanços nas suas negociações com os representantes do empresariado não permite
uma generalização para o conjunto do movimento sindical. Muito pelo contrário.
A previsão do Ante Projeto é que os acordos coletivos tenham validade jurídica
plena e superior à CLT, mesmo em situações onde haja conflito jurídico com as disposições
previstas no código trabalhista. Isso significa abrir uma perigosa brecha na
legislação, que não necessariamente implica em melhorias para o conjunto dos
assalariados. A história recente apresenta um caso sintomático. Em 1994 foi
promovida uma alteração na legislação pela Lei 8949, com a intenção de favorecer e estimular
a formação de cooperativas de mão de obra para setores como vigilância,
limpeza, alimentação, transportes e outros. Feita a cunha e introduzida a
exceção no texto da lei, as mudanças terminaram por reforçar a exploração da
força de trabalho, com a “legalização” de situações que antes seriam
consideradas irregulares e sujeitas a fiscalização e multa.
A estratégia
foi imediata: grupos empresariais sentiram a chamada janela de oportunidade e
constituíram cooperativas de fachada. Bingo! Os trabalhadores passaram a
receber o carimbo de “cooperativados”, mas sem nenhum poder de decisão no
interior da associação para a qual trabalham. As cooperativas têm seus “donos”,
assim como as demais empresas. Mas podem descumprir um conjunto amplo de
exigências trabalhistas, pois a mudança na lei permitiu tal excepcionalidade.
Um verdadeiro tiro no pé do movimento sindical e nos direitos dos
trabalhadores.
Manter a CLT e avançar nas demais conquistas
Manter a CLT e avançar nas demais conquistas
A intenção
do Ante Projeto é louvável. No dizer da exposição que acompanha o documento:
“A idéia do projeto nasceu do desejo de estimular que o País adote a negociação coletiva como instrumento mais moderno para a solução dos conflitos pertinentes às relações de trabalho e à representação sindical no interior da fábrica, como condição fundamental à democratização das relações entre trabalhadores e empresas.”
“A idéia do projeto nasceu do desejo de estimular que o País adote a negociação coletiva como instrumento mais moderno para a solução dos conflitos pertinentes às relações de trabalho e à representação sindical no interior da fábrica, como condição fundamental à democratização das relações entre trabalhadores e empresas.”
No entanto,
o equívoco é partir do pressuposto de que a maior parte dos trabalhadores em
nosso País encontre-se em situação análoga ou similar ao grupo dos metalúrgicos
do ABC. O caminho ainda é longo para que as outras categorias e nas regiões
obtenham os avanços necessários nas relações trabalhistas. Trata-se de
implantar e consolidar as comissões de fábrica ou comitês de empresa, buscando
a negociação no local de trabalho. Porém, abrir a exceção com mudanças na CLT
para a absoluta maioria ainda desamparada, em nome de uma minoria já
consolidada, representa um risco e uma irresponsabilidade injustificáveis.
Assim, é
necessário que o conjunto dos atores políticos afetados por tal proposta de
flexibilização dos direitos trabalhistas estejam atentos e vigilantes. A
ressaca eleitoral oferece uma conjuntura em que as entidades e associações por
vezes sentem-se anestesiadas pelo clima político geral e acabam deixando passar
medidas que podem trazer conseqüências negativas para os próprios
trabalhadores.
Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e
Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela
Universidade de Paris 10.
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